Saturday, January 13, 2007

Episódio 1: A Filha do Lixeiro (Lições Perdidas.)

Episódio 1: A filha do Lixeiro (Lições Perdidas.)
Até o final dos meus três primeiros anos escolar, 1964/65/66 eu estava acostumado a ser o primeiro, ou segundo da classe. Minhas notas eram excelentes. Minhas médias eram bem superiores ás dos colegas de classe, amigos da família ou não, quem mais se aproximava eram algumas das meninas. Em uma cidade pequena como a nossa, estar numa sala de aula, em um determinado ano escolar, significa estar presente onde estão TODOS os moradores da cidade com aquela determinada idade. Afinal era a única escola local. Freqüentada pela elite e também pelos humildes da cidade. Desfrutavamos em geral de um bom ambiente entre nós, crianças da escola, de modo que a condição social-financeira de cada familia não constituia qualquer constrangimento. Era uma mistura saudavel, e, nós, a maioria, pobres, conviviamos bem com os de condição mais abastada.
Mas tem um fato curioso, que me vem à memória, passados tantos anos. E me obriga a relfetir um pouco sobre as molequices daqueles tempos.
Mas não é que, no quarto e ultimo ano, voltando a ser classe mista, meninas e meninos juntos, surge alguém que começa a se destacar mais que eu. Ângela (ou Rosangela), a filha do Lixeiro da cidade. No final do ano, ela se formou em primeiro lugar, á minha frente. Acabei sendo o “orador da turma” como consolação, acho. Orador é meio forçar a expressão, pois o que me limitei a fazer foi uma leitura das duas páginas me entregues pela D. Hélide (uma daquelas professoras de nossa infancia, cuja aura de santa o tempo não consegue desfazer). Felizmente, nunca me aborreci com isto, nem senti alguma raiva ou decepção por ter alguém com notas bem melhores que as minhas. Mas que foi uma situação nova, isto foi. E também uma surpresa interessante.
E agora vem o ponto falho: apesar da pouca idade, da inocência, creio que éramos um tanto preconceituosos, pois nos referíamos a ela como a Filha do Lixeiro.
Pura maldade, olhando-se hoje do ponto de vista politicamente correto. Mas não estávamos, na época, sob este patrulhamento.
É possivel que estivessemos dando vazão a um instinto até natural para nossa pouca idade e a muita ignorância da época, mas certamente desconheciamos o risco de, criar em nós as bases para futuros preconceitos. Se é que não criou . . . .
E, infelizmente, por nós mesmos, não fomos capazes de discernir o que havia de errado em nossa atitude. De qualquer forma, creio, que faltou algum adulto que soubesse olhar de frente o problema e nos dar uma boa esfrega.
Em momento algum sequer nos demos conta do respeito que devemos ter por todas os seres humanos, independentemente de ser o Professor, o Cartorário, o Soldado, ou o Lixeiro, ou o Pedreiro (como era meu pai).
E o mais interessante, é que ainda hoje, tantos anos passados, me vem á memória a figura distinta, ereta, ainda que coxeando de uma das pernas, do pai dela.
Me passava uma impressão de dignidade. Eu o via diariamente pelas ruas da cidade, (a maioria ainda não asfaltadas) sempre conduzindo a sua carroça do chão. Varrendo, coletando numa velha lata e enchendo a carroça. Sempre com o mesmo ar de dignidade e com toda a elegancia possivel. Acho que nunca ouvi sua voz, ao menos, não me lembro, nem sequer para conduzir o animal, como se costumava fazer naqueles tempos, aos berros.
Ele seria "apenas" mais um operário da época, assim como meu pai, com a dignidade que o trabalho árduo costuma incorporar à sua massa de magreza.
Mas um lado positivo, posso perceber ainda hoje: o bom exemplo de trabalho árduo, visando além da própria subsistência, tambem uma busca pelo bem da coletividade. Ficou em mim este registro posivitivo.
Mas quem sabe, acaso não fosse a insensibilidade coletiva, (juvenil ou não) poderia hoje estar registrando uma memória mais humana, menos moleque.

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